Estudos recentes dimensionam as falhas das equipes de hospitais e mostram como superá-las 

Todo ano, dos 19,4 milhões de pessoas tratadas em hospitais no Brasil, 1,3 milhão sofre pelo menos um efeito colateral causado por negligência ou imprudência durante o tratamento médico. Pode ser o joelho esquerdo operado em vez do direito ou um analgésico que causou alergia grave em um paciente que já havia notificado sua sensibilidade ao medicamento, entre outras situações possíveis. A consequência pode ser fatal: quase 55 mil pessoas morrem por ano no país, o equivalente a seis por hora, por causa dos chamados erros médicos. Os dados são de um levantamento do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar da Universidade Federal de Minas Gerais (Iess-UFMG), com base em registros de prontuários de 182 hospitais do país, de abril de 2017 a março de 2018, que serviram de base para extrapolar a situação para os cerca de 6 mil hospitais do Brasil. Com estudos como esse, publicado em 2018, o erro médico, tema indesejado e pouco pesquisado, ganha contornos mais claros e motiva programas de melhoria em instituições públicas e privadas.Reduzir danos e mortes causados por erros evitáveis durante o tratamento médico é um desafio mundial. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que debateu essa questão pela primeira vez em sua assembleia geral de 2002, estima que, todo ano, esse problema deve causar a morte de 2,6 milhões de pessoas – ou cinco a cada minuto. De acordo com os documentos da OMS e estudos de pesquisadores, as também chamadas falhas assistenciais resultam do excesso de horas de trabalho, da formação deficiente dos profissionais da saúde, de procedimentos de segurança não seguidos e da comunicação ineficiente em dois níveis, entre a equipe médica e desta com os pacientes. Muitas mortes e danos poderiam ser evitados com mais atenção às regras de trabalho, como a identificação correta dos pacientes para evitar erros de medicação, e ajustes nos procedimentos rotineiros, como a troca de etiqueta de um remédio para que não seja confundido com outro.Com base em 70 artigos de grupos dos Estados Unidos, Europa e países de outros continentes que avaliaram as consequências do atendimento a 337.025 pacientes, uma equipe de pesquisadores britânicos coordenada pela psicóloga Maria Panagioti, da Universidade de Manchester, Reino Unido, concluiu que uma em cada 20 pessoas atendidas em hospitais sofre algum tipo de dano evitável, como detalhado em um artigo de julho de 2019 no British Medical Journal (BMJ). Nos Estados Unidos, esse tema começou a ser debatido abertamente em 1999, com a publicação do livro Errar é humano – Construindo um sistema de saúde mais seguro (To err is human: Building a safer health system) da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, organização não governamental também conhecida como Instituto de Medicina. Responsável por 210 mil a 400 mil mortes por ano, o erro médico representa a terceira causa de morte entre os norte-americanos, após doenças cardiovasculares e câncer. 

“Nos Estados Unidos, o problema não está resolvido, mas existe a obrigatoriedade, por lei, de as equipes médicas comunicarem as condutas e os eventuais erros para os pacientes”, comenta o psicólogo Vitor Mendonça, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Em 2016 e 2017, como parte de seu estágio de pós-doutorado na Universidade de Washington, em Seattle, Estados Unidos, ele treinou médicos residentes em clínica médica, discutindo formas de agir se cometessem erros. Ele sugeria que pedissem desculpas várias vezes ao paciente, mostrassem empatia e oferecessem ajuda, de acordo com uma metodologia proposta por seu supervisor, Thomas Gallagher.Em um artigo de setembro de 2019 na revista HEC Forum, Mendonça, Gallagher e Reinaldo Oliveira, da FM-USP, observaram que esse assunto, no Brasil, raramente é discutido durante a formação dos médicos, que dificilmente contam com apoio psicológico para superar a angústia que pode se seguir a um resultado inesperado. “O maior erro é não identificar as causas dos imprevistos e corrigi-las com rapidez, aprimorando os processos de trabalho, continuamente, como se faz na aviação”, diz o médico Renato Couto, professor da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais e coordenador do estudo do Iess. 


“No Brasil, a tendência ainda é esconder o erro, em vez de entendê-lo como parte do processo de trabalho”, observa a médica e advogada Isabel Braga, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro. Em um de seus estudos, de abril de 2018 na revista Einstein, do hospital paulista homônimo, ela analisou as decisões em 34 processos judiciais sobre erro médico no estado de São Paulo de janeiro de 2011 a dezembro de 2016, com 73% de condenação dos médicos em primeira instância. As especialidades mais expostas aos erros foram clínica de serviços de emergência, com 10 casos; obstetrícia, com oito; e cirurgia, com sete (cinco de cirurgia geral, um de plástica e um de urológica).Braga observou que os danos decorrentes do parto eram a principal razão das queixas judiciais (17,6%), motivadas também, em seu levantamento, por duas meningites não diagnosticadas, uma leptospirose identificada como dengue, uma perfuração da veia ilíaca durante uma cirurgia de quadril, uma reação alérgica intensa após aplicação de penicilina, uma remoção de laringe com base em um exame falso de malignidade e uma administração do soro antiofídico errado.Seu estudo indicou que os processos judiciais movidos pelos pacientes tendem a ser motivados por ações que resultam em erros que poderiam ser identificados com rapidez. “As ações com consequências a longo prazo, mesmo sem base científica clara, como os tratamentos dermatológicos ou hormonais, dificilmente motivam processos judiciais pelas alegadas vítimas, porque os supostos efeitos dos erros dificilmente podem ser provados”, diz ela.Estudos realizados em outros estados retratam situações semelhantes. Daniel Carlos Neto, advogado e médico brasileiro que faz doutorado em saúde pública na Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales, de Buenos Aires, Argentina, verificou que a negligência era a principal causa (58,6%) dos erros médicos nos 58 processos julgados no estado de Rondônia de janeiro de 2015 a abril de 2018. Em um artigo de maio de 2019 na Revista Eletrônica Acervo Saúde em que apresenta esses resultados, ele definiu negligência como “inação, indolência, inércia ou passividade”. Outra causa de erro médico é a ignorância culpável, quando o profissional de saúde deveria ter se atualizado em determinado tema ou procedimento consensual no tratamento de doenças e não o fez.Os profissionais da área médica que cometem algum tipo de erro médico podem sofrer processos em três esferas. A primeira é a Justiça Civil, por meio da qual o paciente e familiares podem pedir ressarcimento financeiro aos profissionais da saúde, às instituições ou ao Estado como forma de compensação aos alegados erros, após sua comprovação. A outra é a Justiça Penal, para erros que causem danos à integridade física do paciente, como lesão corporal, homicídio culposo ou omissão de socorro. A terceira é a administrativa, por meio de órgãos de classe, como os conselhos regionais ou federal de medicina, que se restringem ao julgamento de infrações em desacordo com o Código de Ética Médica, cuja pena pode ser desde uma advertência até a cassação do direito de exercer a medicina. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) instaurou 702 processos ético-profissionais motivados por erro médico nos últimos três anos. Nesse período, 463 médicos foram considerados culpados: a maioria recebeu advertências confidenciais e 13 penas de cassação do exercício profissional.“Para o médico, pesa mais ser avaliado pelos pares, nos conselhos, do que na Justiça”, concluiu Mendonça. Em seu pós-doutorado, ele entrevistou 20 médicos do município de São Paulo: metade não tinha sofrido processo e a outra metade tinha sido ou estava sendo processada. Os do primeiro grupo relataram ter medo de situações de conflito por causa de seus erros ou mostraram indiferença, alegando que falhas poderiam de fato ocorrer. Os do segundo raramente procuravam ajuda de colegas ou de outros profissionais para falar sobre a situação e se cobravam diante da imagem de infalíveis.Antes, em seu doutorado, concluído em 2015 no Instituto de Psicologia da USP, Mendonça entrevistou 12 pessoas que tinham sido vítimas de erros médicos. “Mais do que o dinheiro da indenização, as vítimas queriam um pedido de desculpas dos médicos e que a punição os fizessem pensar em suas práticas para o erro não se repetir”, ele observou.Em outro campo de enfrentamento dos erros médicos, as instituições agem para aprimorar as condutas das equipes médicas, reforçar as chamadas boas práticas clínicas e obter o aval de órgãos certificadores nacionais e internacionais. Em 2017, uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Belo Horizonte começou a avaliar a chamada segurança do paciente nos sete maiores hospitais públicos da cidade. Um dos hospitais apresentou um nível de 85% de qualidade de atendimento e outro 24%. Nos centros médicos com os níveis mais baixos, a identificação dos pacientes, por meio de pulseiras com código de barras, nem sempre era bem-feita ou usada para acompanhar a aplicação de medicamentos e as condutas médicas. Do mesmo modo, o chamado checklist cirúrgico – a verificação de documentação, identidade do paciente, jejum, local ou membro a ser operado, reserva de sangue e materiais a serem usados – estava aquém do desejado.Por meio de um programa da SMS, os hospitais planejaram o que fazer para cumprir a legislação e melhorar a segurança dos pacientes. Em novembro de 2019, a pediatra Valéria Fonseca, consultora do grupo de inovação em saúde da SMS, visitou novamente os hospitais e notou avanços: “Mesmo hospitais com desempenho inicial baixo deram um salto grande na implantação de medidas de segurança”. Em junho de 2020, o hospital que apresentar os melhores resultados receberá um prêmio de R$ 1 milhão.Reforçado em 2015 em razão da morte de uma mulher de 27 anos por falhas médicas, o programa de segurança do Hospital Israelita Albert Einstein, instituição privada de São Paulo, inclui metas de desempenho e reuniões mensais com os quase 300 médicos para debater falhas nos tratamentos, além de linhas telefônicas pelas quais os pacientes podem pedir que outros médicos refaçam o diagnóstico ou reavaliem os riscos de hemorragias. “Os eventos adversos graves causados por hemorragia caíram de cinco ou seis por ano para zero”, diz Miguel Cendoroglo Neto, diretor-superintendente do hospital. “A despeito das melhorias, enquanto não chegarmos a zero eventos adversos ou infecções hospitalares, não vamos sossegar.”Melhorar a qualidade de atendimento – e, consequentemente, evitar erros – implica evitar a concentração de poder, habitualmente nas mãos dos médicos. “Um dos maiores problemas para melhorar a segurança do paciente é a distância hierárquica, que promove falhas de comunicação e aumenta o risco de erros”, diagnostica o médico intensivista José Mauro Vieira Junior, que em dezembro de 2018 assumiu o cargo de diretor do então recém-criado Instituto de Segurança e Qualidade do Hospital Sírio-Libanês (HSL), de São Paulo. Para trazer novos ares à rotina hospitalar, ele tem apregoado: “Qualquer pessoa da equipe tem autonomia para parar um procedimento se suspeitar de um erro ou identificar um risco para o paciente.”No HSL, de 2002 para 2018, os registros de situações de risco de erros e dos próprios erros passaram de menos de mil para cerca de 16 mil. “Estamos todos mais atentos para notificar riscos de erros, falhas e oportunidades de melhorias de processos de trabalho”, argumenta Vieira Junior. Em consequência, segundo ele, houve uma queda de 70% nos chamados eventos adversos catastróficos, que causam danos permanentes. É o caso de um dos entrevistados de Vitor Mendonça em seu doutorado: um homem que saiu de um hospital – não identificado na tese – tetraplégico por causa da anestesia, aplicada em uma vértebra errada, antes de uma cirurgia de correção de veias dos testículos.

Por: Jaqueline Rodrigues

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